Quinta-feira, 25 de Dezembro de 2014
MUXIMA . XXXVII

ENTREVISTA COM DEUS - Nunca O vi - Nem O chamei…

As escolhas de

  KIMBO LAGOA   

Por: Nell Teixeira -  Loulé / 1998

Rebusquei em meus arquivos um assunto especial para o dia de hoje, Dia de Natal de 2014 e achei algo de interessante escrito por um amigo que, em passagem pelo Algarve, um lugar de acolhimento temporário, entrevistou Deus…

 Nunca O vi, apesar da inexplicável luminosidade da grande treva cósmica aonde cheguei. 
- Nem O chamei. A sua voz veio até mim de nenhures e, contudo, era indescritivelmente envolvente. Redonda e metálica, nada tinha porém do tom iracundo que prostrou Moisés, nem da firme ternura com que travou o braço de Abraão, nem da gravidade suasória que guiou Paulo à santidade. Pelo contrário, exprimia-se em inflexões inesperadas e o tom era surpreendentemente coloquial.  
- E assim Falou:   Procuras-me, Emanuel?  Fiquei pregado no espaço à cruz que lá não estava e, vencida a surpresa, ousei:  - Sois Vós, Senhor?  

 Tinha essa esperança, mas temo não merecer tamanha audácia. E onde estais, que Vos não vejo? - Falo-te donde sou. Espreito-te dum orifício que é maior do que o Universo. Um dos teus, um argentino cego e visionário, suspeitou dele, chamou-lhe “Aleph” e julgou vê-lo num degrau de uma velha escada apodrecida. Mas enganou-se. Ele nada viu, tal como tu, que tão longe chegaste, não me podes ver.   Razão teve Victor Hugo. Conheces? Esse chamou-me a invisível evidência. Como vês, só um paradoxo poético pode aproximar o transcendente.  

 - Fez um brevíssimo silêncio que quase me cegou e prosseguiu:  -Mas que pretendes afinal? Uma entrevista? Para quê? Ninguém a entenderia e ninguém te acreditaria.

- Pensei nisso pela primeira vez. Mas logo uma perplexidade nova me veio interromper. E eu exprimi-a:  - Senhor: porque me questionais tanto, sendo Vós omnisciente? Vós sabeis ao que vim, por que vim, como vim… Logo ele cortou:  - Enganas-te. Posso parecer omnisciente aos teus olhos. É natural. Mas não te disseram que foste feito à minha imagem e semelhança? Em escalas diversas, é claro. Como a lua em silêncio diz mais à Terra do que o uivo que o lobo lhe dirige. Mas, ressalvada a escala, somos parecidos: tenho mais dúvidas sobre o que posso do que certezas sobre o que quero. Admito que isto te confunda mas é assim. Vós, inventásteis a metafísica e a lógica, não fui eu que Vo-las dei. Dizeis, pois, que eu sou absoluto. Mas se o absoluto é o tudo, se o tudo comporta o nada e se o nada exclui o tudo, aonde quereis chegar? Aliás, o absoluto inviabiliza a alteridade, o que, na vossa lógica, pode dar alguma razão formal aos panteístas, mesmo que a sua teologia tenha por vezes uns laivos de narcisismo.

- Dais razão aos panteístas, Senhor?

- Mas quem sois Vós afinal?  

- Chama-me o que quiseres: Jeová, Deus, Alá ou até Grande Arquitecto Universal. Ou até Aquele que está e sempre estará para além da vossa razão. Diz é, aos teus coetâneos que eu não entendo como é que uma raça finita já perdeu tanto tempo a discutir o meu nome, julgando que discute a minha existência.  

 - Quereis Vós dizer que aceitais encarnar todos os monoteísmos?

- Eu julgo o esforço, a vontade e a conduta. E a tua pergunta não tem sentido algum para mim. Um católico francês observou, com argúcia factual, que os grandes monoteísmos foram quase sempre o produto da cultura do deserto. Outros ambientes geram tendencialmente outro tipo de aproximações ao transcendental. Isso pouco me afecta. Claro que aprecio o esforço de razão que levou Amenófis IV ao monoteísmo, mas sobretudo pelo que isso envolvia de evolução moral de uma civilização. Mas aprecio igualmente Buda, cujo nome tantos me atribuem e que, como sabes, não se proclamou Deus, disse repetidamente nada saber de tal matéria e ignorava em absoluto que o vissem a divinizar. Como valorizo Confúcio, Francisco de Assis ou João Huss e ainda todos aqueles que nunca em mim pensaram por estarem demasiado ocupados a fazer o bem aos outros. E aceito que, numa dada circunstância, um qualquer politeísmo me mereça este respeito que dedico a quantos souberem combinar a epopeia da razão com o lirismo da moral, servindo a causa do amor, da justiça e da paz. O que não aceito é que, sendo a vida dada para viver, os homens se matem pelos meus heterónimos.  

 Um cristão que mata um muçulmano (ou vice-versa) julga servir-me quando apenas destrói o que eu mais quero preservar.  Além de pecador, é burro, é um imbecil.  

- A palavra fulminou-me.

- Perdoai-me, Senhor, mas por vezes penso que falais a linguagem de um racionalista… 
– A linguagem que falo é a tua. E nada tenho contra o racionalismo. Por que havia de ter? Eu recusei a causalidade absoluta dos determinismos, porque isso vos escravizava. E recusei também o ilimitado livre arbítrio, porque isso impediria a ciência. Neste compromisso, o que eu quis foi que a Obra fosse a vossa obra. E se for verdade – e não alegoria – que lancei Lúcifer no abismo das trevas, para que dele emergisse Satã, o tentador das almas e o prolífico inventor dos pecados, não acredites que foi para lhe punir a traição de desafiar o meu poder. Não. Ele é a necessária componente da viabilidade do livre arbítrio. Ele é a escolha. A escolha que eu quero vossa. Nem de outro modo vos poderia julgar.  

- Mas em vosso nome, Senhor … 

– Em meu nome, tudo se fez e tudo se disse. Das mais hediondas carnagens aos mais sublimes actos de paixão e humanidade. Já chorei almas que compreensivelmente me odiaram, porque em meu nome os aviltaram ou queimaram. Segue a razão convicta e a moral que te empolga. Não lamentes o que te transcende, porque se ele não existisse, não haveria motivo para a aventura do espírito, que tanto prezas. És o explorador, responsável e solitário, de uma selva inexpugnada e sem fim. Desbrava-a o mais que puderes.  

 - Não ousaria, Senhor, tomar-vos mais tempo, mas… Aqui, juro-vos que numa breve inflexão da voz, eu adivinhei um sorriso:  - O tempo, meu filho, é medida e critério de mortais. Tenho dificuldade em entendê-lo. Ou, mais francamente, desconfio dele. Basta-me a inquietante ironia de o ver a andar para a esquerda e vós a medi-lo com relógios que andam para a direita.  

- Mas a Criação, Senhor, teve um tempo, um momento, sei lá… 

– Sabes, Emanuel? Eu não me lembro de ter nascido. Mas isso não prova a minha Eternidade. Porque tu és mortal e também não te lembras de ter nascido. As minhas dúvidas estarão na estratosfera das tuas, mas existem. Também eu tenho a minha quota de transcendente a enfrentar. Talvez nunca me certifique, na relação que mantenho com a frágil condição humana, de qual de nós foi o Criador e qual foi a Criatura. Mas sabes o que penso disso? É que não tem importância de maior. Importante é que os papéis estão distribuídos e que cada um cumpra o seu. É o que faço e o que espero dos homens.   A voz ecoou terminal. Quase gritei:  - Senhor!  E, num tom suave e complacente, ele voltou: - O que é, Emanuel? Queres levar de volta a tua entrevista ou queres passar o Aleph? Corei, e penso que todo o cosmos deu por isso. E num sussurro que me pareceu inaudível, disse:  - Se vós o consentísseis… quereria ambas as coisas.

Loulé / 1998

Nell Teixeira

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PUBLICADO POR kimbolagoa às 09:50
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