A 25 de Setembro de 2011, completar-se-ão107 anos sobre a data em que se produziu a maior derrota dos Portugueses na chamada África Negra.Foi no Sul de Angola, a cerca de 500 quilómetros da costa, quando uma coluna comandada pelo governador da Huíla, João Aguiar (de que fazia parte Gomes da Costa, mais tarde famoso pela revolução portuguesa de 1926), se internou para lá do rio Cunene, através do vau do Pembe, numa campanha de início orientada contra a poderosa tribo dos Cuanhamas. Os Portugueses, apanhados numa emboscada, caíram às mãos de outra tribo do grupo dos Ambós, os Cuamatos, e deixaram no local centenas de mortos, o que representou, à escala africana, uma trágica surpresa para a Europa colonizadora. Pouco depois das oito horas da manhã, ao cabo de trinta minutos de luta, as linhas portuguesas denotam assustadores indícios de desagregação. Do lado dos Disciplinares, na face da frente, informa-se que as munições estão a chegar ao fim. A artilharia emudece bruscamente, após cada uma das peças ter desfechado vinte e quatro tiros sobre a mata fronteira. Os Cuamatos aproveitam para se aproximarem a coberto dos acidentes naturais e são detectados guerreiros a cinquenta metros do quadrado. Ao mesmo tempo, os lengas procuram fechar o cerco e fazem com que se inicie o ataque à face da retaguarda.
O Kimbo
Transcrevem-se do livro "Senhores do Sol e do Vento" alguns momentos culminantes desse combate terrível e memorável, que fez estremecer nos alicerces a presença lusitana em Angola no início do século XX.
(...) O comandante da expedição dirige as operações da travessia a partir da margem direita, onde mandou improvisar um cais para os barcos de lona de que a coluna vem munida. Aguiar parece ter alimentado durante muito tempo a convicção de que não depararia com resistência significativa nas imediações do rio, o que lhe teria possibilitado acercar-se em dois ou três dias de Mogogo, no Cuamato Pequeno. Esse foi apenas um dos seus erros capitais. Com efeito, do outro lado das águas, por detrás da quietude aparente da mata de Mucohimo, oculta-se aos olhos dos Portugueses um perigo mortal: vindos de Mogogo, onde se realizara a concentração, milhares de guerreiros Cuamatos confundem-se, silenciosos e determinados, com as sombras do arvoredo, espiando, desde o início, os passos dos invasores. Trata-se na maioria de gente de Igura, o soba do Cuamato Pequeno. Mas há também aliados do Cuamato Grande, enviados de Nalueque pelo soba Chaúla. Organizadas em etangas - unidades dos exércitos ambós, de cem a seiscentos homens, chefiadas por lengas, as forças do Cuamato exibem um armamento heterogéneo, mas em todo o caso temível. As espingardas mais aperfeiçoadas -Kropatscheck, Winchester, Mauser - foram distribuídas aos lengas e aos atiradores especiais. Os parentes dos senhores importantes possuem armas Martini, ao passo que os guerreiros comuns empunham espingardas Snider e de pistão. A grande massa do exército dispõe, todavia, do armamento tradicional - arco e flecha, zagaia, punhal e porrinho, a mortífera moca, frequentemente eriçada de cabeças de pregos.
A travessia do CuneneE Pinto de Almeida, o que é feito do comandante do destacamento? Ele vagueia pelo interior do quadrado, perdido num distanciamento de sonâmbulo, contemplando com uma fleuma arrepiante a inexorável realização do destino. À sua volta desenha-se um espectáculo pavoroso. Com excepção da retaguarda, as linhas portuguesas oscilam, retrocedem, abrem brechas repentinas. Os homens clamam que vão ficar ali todos. O doutor Silveira, o amigo de João Roby, rodeado de sangue e de brados de dor, informa que já não há onde meter tantos feridos. O quadro de oficiais reduz-se a olhos vistos. O capitão Morais está inutilizado, o tenente Adolfo Ferreira morreu, o tenente António da Trindade tem uma perna fracturada, o tenente José Maria Ferreira, dos Disciplinares, tombou morto no início da emboscada, e o alferes Oliveira, da 16.ª, jaz de borco com um orifício na nuca de onde jorra sangue abundante. (...)O inimigo viu bem que não podíamos continuar a resistir por mais tempo e, temendo que viessem reforços em nosso auxílio, precipitou-se em massa sobre nós, travando-se um combate corpo-a-corpo, à zagaia, à faca, a machadinho, ao porrinho, defendendo-se os nossos à espada, à baioneta, à pistola, fazendo das espingardas achas de armas (...). Houve rasgos de heroicidade e de loucura!
ArtilheirosVêem-se cadáveres de Angolanos, Açoreanos, de Goenses, Moçambicanos e da metrópole portuguesa, naturalmente. Está ali o que resta dos soldados Sebastião Coimbra, de Braga, Narciso do Sacramento, de Chaves, Joaquim de Sousa Carvalho, do Porto, Germano de Jesus, de Pombal. Corpos retalhados, remexidos, à mercê da alegria e da cobiça dos vencedores. Estão o cabo António Simões Lopes, de Figueiró dos Vinhos, o soldado Joaquim Fialho Pinto, de Évora, o primeiro-sargento José Augusto Carrajola, de Elvas, o soldado Joaquim Damião José, de Faro. Não tardará a haver pesar e pranto em Vinhais, em Curral de Vacas, em Sande, na Várzea de Santarém, em Gondar, no Rosmaninhal, em Aguiar da Beira, na Sertã. Em tantos e tantos outros recônditos lugares do pequeno, aventuroso e trágico Portugal.
Cunene
Mas, por enquanto, na floresta de Mucohimo, a hora é apenas dos guerreiros Cuamatos. As etangas empreendem o regresso às ombalas de Mogogo e Nalueque, entoando alegres cânticos de vitória. Os jovens e destemidos guerreiros trazem consigo as peças de artilharia conquistadas, centenas de outros troféus de guerra e um único prisioneiro - o auxiliar negro que serviu de intérprete aos invasores. Permitiram-lhe que andasse com eles pelos sítios da batalha e deixarão que testemunhe as suas comemorações, após o que lhe concederão a liberdade para ir contar aos Portugueses como fora inexcedível a bravura dos Cuamatos e esmagadora a sua vitória. No campo da luta começam entretanto a apodrecer os mártires negros e brancos de um império insólito. Por ali ficarão, abandonados ao tempo e às feras, até restarem apenas ossadas dispersas.
* Referências Bibliográficas:
- (José Bento Duarte - Senhores do Sol e do Vento - Histórias Verídicas de Portugueses, Angolanos e Outros Africanos - Editorial Estampa - Lisboa - 1999)
O Soba T´Chingange