MOKANDAS XINGUILADAS NO TEMPO . Crónica 3067 - 13.10.2020
HISTÓRIAS DE VIDA X … RECORDANDO A INFÂNCIA I
- Xinguilar: Palavra angolana que significa entrar em transe em um ritual espiritual…
Por
Josué Pedrosa
As escolhas do Kimbo
Fazia bué de tempo, que eu ficava só triste, de ver os outros candengues, alguns pouco mais velhos do que eu, a passar na minha rua com as suas gaiolas feitas de bordão, com várias variedades de pássaros; gungos, celestes, bicos de lacre, rabos de junco, januários e de vez em quando umas viuvinhas. Na mão levavam também as varas de arame, onde enrolavam o visgo com que apanhavam os pássaros.
Eu até já tinha ido algumas vezes, com alguns dos mais velhos e via como faziam, mas não tinha visgo, nem sabia como arranjá-lo. Com o tempo, foram-me deixando acompanhá-los e lá íamos para as bandas do lado de lá da linha do caminho-de-ferro, onde anos mais tarde haveria de ser construído o Bairro do Cazenga.
Figo de mulembeira - sicónio**
Naquele tempo, aquele terreno cinzento e barrento, era pela época das chuvas, cultivado pelas “mamãs” que, com os seus filhos às costas, ali plantavam batata-doce, milho e feijão. Uma ou outra vez, roubávamos umas maçarocas e ou babatas doces e tirando as “camisas” ou a pele com os dentes comíamos mesmo ali. Quando éramos avistados, só havia uma coisa a fazer; bazar a sete pés para bem longe.
Bem junto à linha, do lado de lá do dito terreno, havia uma grande mateba onde os “kambas” ficavam escondidos, colocando capim e outros arbustos para fazerem um pequeno abrigo de forma que os pássaros os não vissem. Enrolavam o visgo nos arames e prendiam estes no topo de canas, de maneira a sobressaírem por cima da mateba. No chão, uma pequena gaiola de bordão com um ou dois pássaros serviam de chamariz. Quando os pássaros pousavam nas varetas do visgo, saíam rapidamente do abrigo e apanhavam os pássaros que colocavam numa outra gaiola, para não interferirem com os chamarizes.
Alguns conseguiram aprender o canto dos gungos e deixaram de necessitar de levar chamarizes. Tanto pratiquei que também aprendi e ainda hoje sei como era.
Cansei de ver e de sonhar e um dia pus mãos à obra. Comprei um bordão e fiz uma gaiola que não sendo de deslumbrar, servia bem os meus objectivos que era guardar os pássaros que viesse a apanhar. Faltava, porém, o mais importante; o visgo. Sabia que era apanhado na mulembeira, mas não sabia como. Falei com os mais velhos que riram de mim e disseram que não conseguia apanhar, pois era difícil e amargo. Explicaram-me, mas uma coisa é explicar, outra a realidade.
Eu conhecia poucas mulembeiras; havia uma, bem grande, mas longe da minha casa, aí a uns três quilómetros, que ficava no lado direito do início da estrada de Catete, ali onde anos mais tarde os miúdos apanhavam o machimbombo para o Bairro Popular e Terra Nova. Como era uma árvore de grande porte, era difícil subir por ela, pois o seu tronco era de grandes dimensões e eu era pequeno, mas era aquela, a árvore ideal.
Enchi-me de coragem, fiz três ou quatro palitos da casca do bordão, lavei muito bem um tinteiro vazio de tinta “Parker” que enchi de água e escondi uma catana, que enrolei num pano para que lá em casa ninguém visse. No dia seguinte, ainda cedo, pus-me a caminho e lá fui até à mulembeira. Apesar de tudo, a distância até nem era nada de especial, pois eu ia todos os dias a pé, da Terra Nova até à Escola 15, por detrás da Liga Africana, na Vila Clotilde, pelo que em pouco mais de meia hora estava no local.
Ali chegado, confesso que tive medo de subir para aquela árvore, mas tinha de tentar e, com extremo cuidado lá consegui subir. Os seus ramos eram grossos e iriam proporcionar-me uma boa colheita. Dei cerca de duas dúzias de golpes e vi os mesmos encherem-se de seiva branca como a neve. Retirei um dos palitos e comecei pelo primeiro golpe, onde a seiva começara a oxidar e a solidificar, enrolando a seiva viscosa no palito. Acabado este procedimento, colocava o palito na boa e retirava o visgo, mastigando-o como se fosse uma pastilha elástica. O sabor era horrível e era preciso estar permanentemente a cuspir para aliviar o sabor que ficava na boca. Felizmente a mulembeira é uma árvore que dá uns pequenos, mas saborosíssimos figos, pelo que, de vez em quando, comia alguns para afastar aquele desagradável sabor.
Mulembeira
Lentamente, fui retirando o visgo dos golpes que fizera na árvore e quando a bola que se formava atingia um a um centímetro e meio, metia-a dentro do frasco que levara comigo. Aquele trabalho demorara não menos de umas três horas, mas no final tinha conseguido uma excelente bola de visgo que dava certamente para umas cinco ou seis varas de arame*. O desagradável era ter que mastigar continuamente o visgo, cuja bola tinha agora para aí uns três a três centímetros e meio. Quando cheguei a casa, o visgo já estava mole e pronto a ser usado; mudei a água do frasco e guardei-o onde ninguém lá de casa visse, não fossem deitá-lo fora ou para o lixo.
Demorei ainda alguns dias até conseguir arranjar quatro ou cinco varas de arame, que necessitavam de ter cerca de cinquenta centímetros de comprimento e que era conveniente ser o mais liso possível, para o visgo não ficar agarrado a ele. Finalmente, munido da gaiola, do visgo e das varas de arame, lá fui até à mateba onde enrolei o visgo na diagonal de cima abaixo como vira fazer e coloquei as varas espetadas em canas e estas de forma a sobressaírem por cima dos ramos da mateba. Escondi-me no abrigo por baixo da mesma e aguardei que os pássaros viessem e pousassem sobre elas. Consegui apanhar alguns gungos e fui adquirindo prática, pois senão houver cuidado os pássaros ao baterem as asas para tentarem libertar-se, batem com elas no visgo e é quase impossível tirar-lho das penas.
Fiz uma gaiola maior que se foi enchendo dia após dia, até que, admirado com a minha habilidade, o meu pai anuiu e construiu uma gaiola metálica com cerca de quatro metros de comprimento por dois de largura e dois de altura. Além dos gungos (pardais de bico vermelho) apanhei também januários e celestes. O viveiro, como lhe chamava, estava bem decorado com pequenos arbustos que transplantei lá para dentro, ninhos feitos de capim, fixos junto ao telhado e cobri o chão de areia para que pudessem comer alguma juntamente com o massango e alguma massambala que eram atirados para o chão tentando recriar o ambiente como se estivessem em liberdade. Tinha também uma bacia de plástico, enterrada na areia para que pudessem beber água e tomar banho. Estava orgulhoso, eu tinha conseguido fazer igual ou melhor que os mais velhos, mas igual ao meu viveiro não tinham; este era grande e recriava, com as devidas proporções, o ambiente de semiliberdade em que deviam viver.
Mas o tempo passou, eu cresci, vieram as “meninas” e depois as Hondas, para me enlouquecerem e atirarem para as corridas e mais tarde o serviço militar. Já não eramos crianças, eramos rapazes feitos homens e criámos os nossos grupos de amigos, juntando-nos à noite no clube do bairro para as conversas e passeios próprios daquela idade. Entretanto, houve necessidade de mudança de casa e não havia espaço para o viveiro; tudo acabou e ficou a lembrança duma era da minha infância/juventude, que entendo guardar nas minhas memórias, para um dia os netos lerem e ficarem a saber como era a infância/juventude do avô e daqueles tempos numa terra lá longe em Africa, chamada Angola.
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Partilho com os amigos que gostam de ler e recordar esses tempos, ciente que alguns deles fizeram igual ou muito parecido.
Josué Pedrosa
(09.10.2018)
Nota* - Eu, o T´Chingange, usava finas e duras varas de um capim próprio existente no morro da Corimba ou Belas que cresciam perto de lagoas
Nota**A palavra sicónio tem origem na expressão figo em grego (sykon).
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