MOKANDA ANTIGA - ODISSEIA ANGOLA . Parte III de IV - AGOSTO DE 1975
Crónica: 3044
Emocionante. Uma crónica maravilhosa para os meus amigos de Angola, especialmente para os que fizeram a CARAVANA de fuga pelo deserto até à África do Sul. Vou notificar alguns amigos que sei que lá estiveram nas caravanas e seguiram na travessia do deserto kalahári e Costa dos Esqueletos…1975 - 2020
As escolhas do Kimbo
Por
Sonia Zaghetto
Aprendi, nessa época, que tudo o que está ruim pode piorar. Minha familia deixou Nova Lisboa, assim como meu namorado e a mãe dele. Eu fiquei. Aguardava minha mãe, que tentava sair de Luanda. De repente me vi sozinha, aos 16 anos, num país que se esfacelava e numa cidade em que os grupos guerrilheiros se enfrentavam para dominar o território. Agora havia tiroteios em toda parte. Passei a morar na sede da Cruz Vermelha. Finalmente minha mãe chegou e conseguimos uma carona para Sá da Bandeira, mais ao sul. Fomos de camião, minha mãe na boleia com o motorista e a esposa dele; eu e os filhos dele no meio da carga de batata. Até hoje, meu senhor, o cheiro de batata me agonia. É cheiro de fuga, de desesperança e perda.
Em Sá da Bandeira reencontramos meu namorado e a familia dele, com quem tinhamos combinado sair de Angola. A confusão era enorme. Gente andando de um lado pro outro, tentando encontrar familiares ou arrumar um jeito de sair dali, gente sem um centavo até para comprar água. Faltava comida, além de esperança.
Não lembro exatamente da data em que finalmente saímos em caravana (onze carros e um camião) à noite pelo meio da mata, com destino à fronteira com a África do Sul. Sei que era início de agosto. Durante a viagem encontramos duas patrulhas de guerrilheiros. A primeira foi mais tranquila, aceitaram o suborno de cigarros. Já a segunda foi apavorante: queriam nos prender de qualquer jeito. Segundo eles, éramos ladrões das riquezas de Angola. Todo aquele zelo patriótico não resistiu à propina. Além de cigarros e bebida alcoólica, demos dinheiro para que nos deixassem seguir. O sol começava a nascer quando encontramos uma coluna do exército da África do Sul. Ainda estávamos em território angolano, a cerca de 10 quilômetros da fronteira, mas eles nos escoltaram até um campo de refugiados já em território sul-africano. Foi o primeiro campo em que ficamos.
Eu sentia raiva, meu senhor. Muita raiva! Uma revolta surda contra os brancos portugueses, que nos exploraram durante séculos e agora nos viravam as costas dizendo que éramos brancos de segunda classe. Revolta contra os negros, por acharem que a diferença na cor das nossas peles fazia que fôssemos diferentes deles. Éramos todos angolanos, mas apenas nós estávamos sendo expulsos de nossa terra e não tínhamos para onde ir.
O acampamento era feito de barracas de campanha. Sabes como é, senhor, aquelas barracas verdes do exército? Na nossa barraca dormiam seis adultos e duas crianças. Cada um recebia um um cobertor e três refeições por dia. Comida pouca, ninguém ficava saciado, mas matava a fome. Estávamos agradecidos, pois os sul-africanos faziam mais por nós do que o governo de Portugal. Esse acampamento – destinado a angolanos e moçambicanos – era um local de filtragem. A alguns era vedada a possibilidade de ficar no país. Esses eram logo encaminhados ao grupo consular português e enviados ao aeroporto, onde aviões da África do Sul os levavam para Portugal. Outros eram mandados a outros campos de refugiados.
Nós, graças a meu futuro cunhado, que era engenheiro agrícola e já tinha uma promessa de emprego, fomos para outro campo. Escoltados por uma coluna do exército, seguimos para Tsumeb. Na estrada para Winduck, havia uma cidadezinha. Avistamos gente nos esperando. Abordaram o oficial do exército que nos conduzia e pediram para nos dar abrigo naquela noite. Desconhecidos encharcados de solidariedade, que queriam nos oferecer o alimento mais precioso, esperança.
Eu e minha mãe fomos para casa de um casal idoso que nos acolheu com uma refeição quente, um banho e uma cama quentinhos. Estava tanto frio. Pela manhã, logo depois do café, nos levaram à loja da filha deles, onde já estavam a minha futura cunhada e sogra. Disseram para escolhermos as roupas que quiséssemos. Nesse dia fiz as pazes com Deus. Aquelas pessoas me apresentaram o outro lado da humanidade, feita de bondade com quem está refém da tragédia. Só podiam ser emissários do Divino, anjos perdidos no interior da África.
(Continua…)
Sonia Zaghetto
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