MOKANDA ANTIGA - ODISSEIA ANGOLA . Parte IV de IV - AGOSTO DE 1975
Crónica: 3045
Emocionante. Uma crónica maravilhosa para os meus amigos de Angola, especialmente para os que fizeram a CARAVANA de fuga pelo deserto até à África do Sul. Vou notificar alguns amigos que sei que lá estiveram nas caravanas e seguiram na travessia do deserto kalahári e Costa dos Esqueletos…1975 - 2020
As escolhas do Kimbo
Por
Sonia Zaghetto
Em Tsumeb, um novo acampamento, as mesmas barracas de campanha. Mas a comida era melhor, assim como o tratamento que recebíamos. Ficamos pouco tempo. Conseguimos ser aprovados na seleção, graças a meu futuro cunhado e por eu ter começado a servir como intérprete. Benditas aulas de inglês.
Mudamos de campo outra vez. Fomos para Grootfontein, mais próximo a Pretória. O campo era um presidio que estava sendo desativado. Restavam lá uns 3 ou 4 presos, todos idosos. O presidio era formado por várias casernas e eles nos separaram. Tinhamos refeitório com mesa e bancos, e a comida era surpreendente. Imagine, senhor, que comemos até sobremesa de maçã caramelada no forno. É que os presos eram os cozinheiros. Fiz amizade com um deles. Tinha 65 anos e estava preso há 30 pelo assassinato da esposa num acesso de ciúme. A filha não o visitava. Depois que saí do campo e ele da prisão, fui à casa dele. Era um homem gentil – como pudera fazer aquilo? Mistérios do coração humano que jamais saberei.
Continuei sendo intérprete junto à assistente social e ao diretor do campo. Meu futuro cunhado arrumou emprego numa fazenda. Meu namorado logo sairia, mas eu era menor de idade e não poderia deixar o campo. Estava dificil para minha mãe. Ir para Portugal estava fora de questão, dado o desprezo com que nos tratavam. Eu e Zé decidimos casar. Minha mãe passou a ser minha responsabilidade (acredita que até hoje ela fica muito zangada quando lembra disso?). E assim, no dia 6 de novembro de 1975, casei dentro de um presidio que funcionava como campo de refugiados. O diretor e a assistente social foram nossos padrinhos.
Os soldados que tomavam conta do campo fizeram uma cotinha e pagaram a nossa festa e a lua de mel num hotel na cidade. O casório teve bolo, vestido de noiva e tudo, viu? O Jeep do exército nos levou ao hotel. Os soldados ficaram dentro do Jeep vigiando para que não fugíssemos. De madrugada, acordei com dor de ouvido. Na recepção não havia remédios, as farmácias só vendiam medicação com receita. Os soldados me levaram para o hospital, onde fui atendida. Ao voltarmos para o campo, os soldados contaram para todo mundo a aventura. Não escapamos à gozação geral: “Nem os ouvidos poupaste à miúda, Zé?”
Casada pelas leis sul africanas, no dia 11 de novembro casei na Igreja e duas semanas depois casei novamente no consulado português. Em menos de um mês casei três vezes. Felizmente, com o mesmo homem. E assim deixei minha terra. Um ano na África do Sul foi suficiente para sabermos que lá não era o nosso lugar. Além da cultura muito diferente, começavam a ocorrer ali os mesmos episódios violentos que havíamos testemunhado em Angola. Decidimos mudar. Escolhemos o Brasil, país que desde minha pré-adolescência eu sonhava conhecer.
Partimos para Portugal a fim de cuidar da burocracia. No dia 7 de fevereiro de 1977 zarpamos num navio italiano rumo a Santos, onde desembarcamos dez dias depois. Eu estava com seis meses de gravidez.
A imensa maioria dos brasileiros nos recebeu de braços abertos, principalmente as pessoas mais humildes. Alguns, mais abastados, nos tratavam friamente, mas nunca fomos hostilizados. Aos poucos aprendi a amar a terra nova, a querê-la a ponto de ficar amuada quando falam mal dela. Percorri este Brasil quase todo, conheci cada lugar que nem tens idéia, senhor. Andei por picadas, atravessei pontes que eram apenas duas tábuas paralelas, morrendo de medo que elas quebrassem e o carro despencasse. Comi queijo de coalho em casebres de gente mui simples e coração enorme. Ah, senhor, que país maravilhoso é esse teu Brasil!
Descasei, casei de novo.
Quando a saudade dava botes sobre a gente, o Walter fazia a muambá. Comprava cachos de dendê e tirava o óleo em casa mesmo. Era o único jeito de ficar igualzinho ao de Angola. Aqui as frutas são praticamente as mesmas que tínhamos, a temperatura e as praias também, mas não é a minha casa, entendes senhor? Aqui eu me sinto bem, mas falta o cheiro da minha terra, falta o cacimbo e a silhueta única do imbondeiro em meio à névoa.
Há uma ausência que não consigo definir. Tudo tão igual, mas ao mesmo tempo diferente. Talvez a gente seja mesmo filho de nosso chão, não sei. Parece que nesta paisagem familiar falta a alma da minha terra, a casa que posso realmente chamar de minha.
Eis-me aqui, senhor, aos 60 anos, com três filhos e dois netos brasileiros. Sou feliz, bem sabes, mas a saudade é bicho traiçoeiro: quando a gente menos espera, ela surge, arrepiando a pele, cravando as unhas na carne, abrindo ocos no peito. Recolho então minhas lembranças, as músicas e fotos de minha terra, e choro. Mansamente. Angola ainda vive em mim. Como tatuagem de alma."
FIM
Sonia Zaghetto
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