ANGOLA . GERAÇÃO CANGURU – Bolunga com pirão e carne de caça …
Por
Dy - Dionísio de Sousa (Reis Vissapa)
África, é uma bênção e um veneno.
Chega de malandragem e cabulice, ou acabas o liceu ou vais trabalhar. Palavras sábias da minha saudosa mãe que não era adepta da “Geração Canguru” e que dava o litro para me proporcionar uma educação académica melhor do que ela própria tivera. Percebi de imediato que os meus dias de vagabundagem endémica estavam prestes a finalizar. Sem grandes opções perante este xeque-mate optei por enveredar pela viela do trabalho, algo de que nunca me arrependi. Neste contexto tive como primeira experiência uma fugaz passagem pelos serviços de meteorologia, nessa época instalados no aeroporto da Mucanca. Para azar meu apanhei como chefe um “engomadinho” que parecia ter engolido um garfo e ingerido toneladas de prosápia e que olhava de alto para tudo o que não era branco de primeira. Negando-me a trabalhar sob as ordens de tal criatura acabei por ir parar à brigada recém criada para estudar as águas fecundas dos maravilhosos rios de Angola. Depois de algumas cunhas lá me admitiram nos seus quadros como assalariado o que devo dizer foi uma lança em África pois esses serviços tiveram início com um batalhão de pessoas importadas do “talhão” que iniciaram as suas vidas em Angola com todas as mordomias e mais algumas.
Casas apetrechadas, carros e até criados, à imagem de muitos outros em diversos ramos de actividade que chagavam à “Província com a papinha feita e a maçaroca garantida”. Mas nem todos vinham de livre e espontânea vontade. Mais ou menos na mesma altura, finais dos anos cinquenta, Luís Alberto, rapaz de boas famílias com mais cinco ou seis anos que eu, vagabundeava pela Lisboa nocturna em grande actividade. Os seus escritórios preferidos eram os “Nigth Club” nome pomposo dado aos “Cabarets” onde fulgurantes “Borboletas” ganhavam a vida à ficha e pequenos antros onde se jogava a dinheiro à socapa. Em relativamente pouco tempo o Luís delapidou uma pequena fortuna o que deixou os manos de linhagem marinheira e bem encaminhados na vida em franco desassossego. Rapazes de hábitos militares espartanos agarraram no Luizinho e contra a sua vontade “degradaram-no” para Angola. Acabámos por nos conhecer na dita brigada para onde entrou de imediato com um salário razoável. Mas nem tudo eram rosas para ele pois tinha de se apresentar na PIDE-DGS de dois em dois meses. A polícia de estado do velho Salazar tinha várias incumbências além da primária que era vasculhar os detractores do regime. Fiscalizava também os negócios de diamantes feitos à revelia da Diamang ou da Condiama ou mais propriamente da De Beers e sempre que podia apreendia os frasquinhos de brilhantes que desapareciam das delegações sem deixar rasto.
Para vos dar ideia do aspecto deste amante transcontinental da boa vida começo por dizer que teria aproximadamente um metro e oitenta, cabelo negro e liso penteado para trás e aconchegado com algum “Brilcream”, uma fleuma capaz de fazer irritar um granito e um humor mordaz carregado de sarcasmo. Quando nos encontrámos pela primeira vez identifiquei-o de imediato com a figura criada por Péricles Maranhão para a contra-capa da revista brasileira O Cruzeiro o famigerado “Amigo de Onça”. Ainda vestia à maneira dos “Bindges” alcunha que servia para identificar quem cruzara o Equador recentemente. Durante dois meses poucas ou nenhumas palavras saíram da sua boca e era visível que o desterro forçado não era definitivamente do seu agrado. Finalmente enviaram-nos para as terras do fim do mundo e o bom da Luís lá foi connosco, desta feita já com roupa apropriada e muito mais loquaz. Quem nunca trabalhou nas brigadas que pululavam em Angola numa tentativa de se fazer à pressa um levantamento dos recursos da “Quinta do Patriarca” não sabe o que perdeu. Deslocação para lugares onde a densidade populacional raramente atingia um habitante, negro ou branco por cem quilómetros quadrados e caça a perder de vista.
Manadas imensas de búfalos, gnus, olongues, zebras e palancas, toda a sorte de predadores, uma variedade infinita de insectos e répteis e uma impressionante e espectacular quantidade de aves diversas. Tenho de convir que tal éden no antigo Cuando-Cubango deve ter sido um murro no peito do nosso Luís, habituado a mirar apenas as aves nocturnas da longínqua Lisboa. Lembro-me de uma das primeiras noites em que tivemos de ocupar um casebre junto à jangada dos Caocos no rio Cubango e ele verificou consternado que o tecto se movia volta e meia. As cobras “Rateiras” ziguezagueavam pelo capim que servia de telhado com toda a tranquilidade, pouco se importando com quem estivesse a dormir no chão. O seu olhar de espanto quando viu o primeiro jacaré no seu habitat natural e o atravessar a vau de uma manada de gado que iria percorrer a pé centenas de quilómetros até à Lunda levando para tal tarefa cerca de meio ano. Ao fim de um mês de medições e mais medições já Luís Alberto mergulhara nas águas do rio sem qualquer temor e exercitava com sucesso a carabina abatendo os primeiros antílopes. Sem o notar o veneno africano invadia-lhe o corpo e o espírito inexoravelmente. Aprendi com ele em contrapartida a jogar póker e Burro Americano à luz de um petromax e ouvi histórias da sua vida de estroina.
Cumprido o primeiro ano de degredo e direito a um mês de férias o Luís não foi de modas e mandou-se para Luanda e eu acompanhei-o. Passamos noites seguidas a calcorrear os cabarets da capital angolana e o “Rex”, o “Bambi”, o “Estoril” e muito outros fizeram parte do nosso cardápio nocturno. Quando a noite se extinguia estávamos a ouvir fado na “Casa Portuguesa” ou no “Retiro da Saudade”. Por vezes alterávamos o programa e íamos jogar à batota num primeiro andar junto ao velho cinema Colonial e no rés-do-chão comíamos sandes de carne assada e caldo verde para arrematar a noite. Saciado da sua sede pela vida nocturna voltamos ambos para o Lubango para mais um ano de deambulações pelo maravilhoso sul de Angola, navegando rios de sonho e calcorreando “picadas” de encanto. A fleuma e a mordacidade desapareciam por completo no mato e davam lugar a um espírito folgazão completamente embriagado com as “chanas”, as “mulolas” e a beleza sagrada das sanzalas que polvilhavam os territórios do sul. Um dia por condição menor desterraram-me por castigo para o Curoca, lá onde as Montanheiras Negras vivem enfeitiçadas pelas magníficas “Quedas do Montenegro”. Ele foi incumbido de me levar para a beira do Cunene num todo o terreno “Nissan Patrol”. Um temporal tremendo entre a Oncócua e o rio tornou a picada num lamaçal e espantei-me com a perícia com que guiou a viatura na picada escorregadia. Luís Alberto estava completamente envenenado por África nada restava do homem das vestes idiotas com que deixara Lisboa.
Nesse ano deslocou-se de novo a Luanda por altura das férias e permaneceu lá apenas uma semana. O mato clamava pela sua presença e ele estava deserto por lhe fazer a vontade. As noites iluminadas por miríades de estrelas, as caçadas ao romper da aurora a frescura gratificante das águas dos rios, o pirão com carne de caça, a bolunga, as gentes do interior com o seu carinho e hospitalidade inequívoca, transformaram o seu degredo no mais ofuscante dos paraísos. Tivemos de sair os dois à pressa de Angola e viemos por caminhos diferentes. Certo dia vi na Avenida da Liberdade um sobretudo igual a outro que eu conhecera das noites frias de Agosto no planalto da Huíla. Cor de mostarda e mesclado de quadradinhos azulados e já bastante puído envergado no corpo de alguém que caminhava no nada e dorido. Era o Luís e, foi uma alegria revê-lo. Voltara à vida antiga e à mulher da noite ainda mais antiga mas dobrado pela saudade e pelo veneno. Disseram-me que morreu tragicamente na estação do Rossio num assalto perpetuado por um gang de africanos. Nunca averiguei a veracidade deste facto mas sei que morreu pobre por ter morrido longe do seu mato de eleição e imensamente rico por ter vivido em Angola.
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