Domingo, 27 de Julho de 2014
MOKANDA DA LUUA . XXVII

ANGOLA . LISBOAO VÔO DA VIUVINHA NEGRA . AS FACES DE DEUS

Por

    Dy - Dionísio de Sousa  (Reis Vissapa) 

Januária abandonou a cubata tradicional com a samacaca envolvendo o corpo esguio e elegante, deixando apenas expostos à brisa fresca da manhã os seios púberes de contorno delicado com os mamilos levemente virados ao céu. Olhou a incandescência solar a trepar o violeta matinal com que o horizonte se vestira. Ouviu um rumor distante e com a mãozita em forma de pala protegeu o olhar e viu a cinza metalizado do Boeing que sulcava as alturas deixando atrás de si um carreiro rectilíneo de flocos brancos. Provavelmente era Deus que ia fazer o seu passeio diário acompanhado dos seus anjos, pensou para consigo própria. O tom da sua pele de um negro retinto acentuava a sua origem Bijagós lá longe na Guiné. Já meio escondidas pela mata de mutiátes, duas cruzes velavam há quase um ano pelos restos de Norberto Fragoso e a sua companheira Cacilda Rebelo que tinham vindo nos anos cinquenta para Angola em busca de melhor vida. Os nomes tinham-nos adquirido na colónia portuguesa da Guiné e tanto marido e mulher tinham sido empregados de Floriano Fragoso e de sua esposa Gisela Rebelo Fragoso roceiros endinheirados que os recolheram ainda jovens.

 Norberto tornara-se um excelente cozinheiro e um artista na arte de bem servir e Cacilda transformou-se na ama dos filhos do casal. Tudo ia bem até ao dia em que o fazendeiro se perdeu de amores pela bela Cacilda e foi apanhado em flagrante assédio à rapariga por Dona Gisela. O casal acabou por fugir pois a corda parte sempre por elo mais fraco e acabariam por chegar a Angola num barco de cabotagem que os largara em Moçamedes. Januária pensou que num dia destes tinha de limpar e alindar as campas dos seus progenitores. Em breve faria um ano que os pais haviam falecido e durante esse espaço de tempo sobrevivera sozinha cuidando do arimbo e de quatro cabeças de gado que herdara. Com doze anos de idade, apenas sabia que Deus existia pois a mãe assim a ensinara. Nas sanzalas limítrofes já restava pouca gente. As populações tinham partido com o advento da entrega de Angola aos negros e o fecho das poucas lojas de comerciantes brancos que residiam naquela região.  Quando chegou à loja do senhor Aparício para trocar uns franganitos por uns quilos de fuba, este estava a carregar a velha Chevrolet com toda a sorte de bagagem preparando-se para partir também. – Então Januária ainda por aqui andas rapariga? – Não tenho para onde ir senhor Aparício. – Respondeu com humildade. Aparício Cardoso e a sua mulher não tinham filhos e Dona Maria do Céu Cardoso gostava daquela rapariguita airosa e de rosto bonito. – Queres vir connosco Januária? Não vais ficar aqui sozinha. Partiu com eles em direcção à fronteira de Santa Clara mais uma pequena trouxa com os seus pertences e atravessou-a como filha adoptiva do casal com documentos perdidos.

 Quando deu por ela estava na barriga de Deus que roncava baixinho no céu azul. Perto do Senegal Dona Maria do Céu apontou para baixo e fê-la ver um conjunto de ilhotas do arquipélago dos Bijagós e sussurrou-lhe ao ouvido. – Foi daquele lugar que os teus pais vieram. A menina estremeceu e agradeceu ao Deus gigante tê-la levado a ver a sua terra ancestral. Quando aeronave aterrou em Lisboa verificou que havia mais deuses espalhados por o lugar e uma multidão a sair de dentro deles.  O senhor Aparício com os parcos tostões que conseguira trazer na fuga, abriu uma tasca na Reboleira e Januária passou a ser cozinheira, a servir à mesa e a tratar de todos os afazeres da casa. À noite deitava-se extenuada pois as refeições baratas para os trabalhadores iam tocando o negócio para frente lentamente. Um dia o senhor Aparício trouxe uns papéis e foram a uma repartição onde ela teve de besuntar os dedos e segundo ele era agora cidadã portuguesa.

 Com dezoito anos de idade tornara-se uma linda mulher e os olhares dos trabalhadores cabo-verdianos e guineenses devoravam-lhe o corpo com o olhar. Um dia um deles mais atrevido apalpou-lhe os seios e Nicolau Manduco que secretamente a adorava aplicou-lhe dois murros nas ventas e de rastos atirou com ele para o passeio. Quando os ânimos serenaram e ele lhe perguntou se estava tudo bem, ela percebeu que aquele homem robusto e olhar amigável, gostava realmente dela. Pediu ao senhor Aparício se podia frequentar a escola nocturna e ele embora contrariado com medo de perder a extraordinária cozinheira acabou por aceder. Aos vinte e dois anos já sabia ler e escrever e amealhara uns tostões com a espécie de ordenado que o seu protector lhe pagava.

Um dia Nicolau Manduco perguntou-lhe se ela não queria ir viver com ele para a Guiné onde pensava abrir um pequeno restaurante para os turistas que visitavam o território. O senhor Aparício gesticulou e chamou-a de ingrata quando ela lhe comunicou a sua decisão, mas Januária fartara-se de ser cozinheira e criada e partiu para a terra dos seus pais na barriga de Deus. O pequeno estabelecimento foi baptizado de “Viuvinha Negra” o nome com que o seu saudoso pai a alcunhara em pequenina e a comida é de comer e chorar por mais. Volta e meia Deus passa por cima do território e Januária benze-se e agradece-lhe em silêncio o seu destino e pensa nas centenas de pessoas que Deus transportara para longe da sua terra, alterando-lhes o destino.

Ilustrações de Ana Rocheta

Reis Vissapa

As escolhas do soba T´Chingange



PUBLICADO POR kimbolagoa às 08:54
LINK DO POST | COMENTAR | ADICIONAR AOS FAVORITOS

Março 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
12
13
14
15
16

17
18
19
20

24
25
26
28
29
30

31


MAIS SOBRE NÓS
QUEM SOMOS
Temos um Hino, uma Bandeira, uma moeda, temos constituição, temos nobres e plebeus, um soba, um cipaio-mor, um kimbanda e um comendador. Somos uma Instituição independente. As nossas fronteiras são a Globália. Procuramos alcançar as terras do nunca um conjunto de pessoas pertencentes a um reino de fantasia procurando corrrigir realidades do mundo que os rodeia. Neste reino de Manikongo há uma torre. È nesta torre do Zombo que arquivamos os sonhos e aspirações. Neste reino todos são distintos e distinguidos. Todos dão vivas á vida como verdadeiros escuteiros pois, todos se escutam. Se N´Zambi quiser vamos viver 333 anos. O Soba T'chingange
Facebook
Kimbolagoa Lagoa

Criar seu atalho
ARQUIVOS

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Dezembro 2023

Novembro 2023

Outubro 2023

Setembro 2023

Agosto 2023

Julho 2023

Junho 2023

Maio 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Janeiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Agosto 2022

Julho 2022

Junho 2022

Novembro 2021

Outubro 2021

Setembro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Maio 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Novembro 2020

Outubro 2020

Setembro 2020

Agosto 2020

Julho 2020

Junho 2020

Maio 2020

Abril 2020

Março 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Dezembro 2019

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Janeiro 2019

Dezembro 2018

Novembro 2018

Outubro 2018

Setembro 2018

Agosto 2018

Julho 2018

Junho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Março 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Agosto 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

TAGS

todas as tags

LINKS
PESQUISE NESTE BLOG
 
blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub