ANGOLA . LISBOA – O VÔO DA VIUVINHA NEGRA . AS FACES DE DEUS
Por
Dy - Dionísio de Sousa (Reis Vissapa)
Januária abandonou a cubata tradicional com a samacaca envolvendo o corpo esguio e elegante, deixando apenas expostos à brisa fresca da manhã os seios púberes de contorno delicado com os mamilos levemente virados ao céu. Olhou a incandescência solar a trepar o violeta matinal com que o horizonte se vestira. Ouviu um rumor distante e com a mãozita em forma de pala protegeu o olhar e viu a cinza metalizado do Boeing que sulcava as alturas deixando atrás de si um carreiro rectilíneo de flocos brancos. Provavelmente era Deus que ia fazer o seu passeio diário acompanhado dos seus anjos, pensou para consigo própria. O tom da sua pele de um negro retinto acentuava a sua origem Bijagós lá longe na Guiné. Já meio escondidas pela mata de mutiátes, duas cruzes velavam há quase um ano pelos restos de Norberto Fragoso e a sua companheira Cacilda Rebelo que tinham vindo nos anos cinquenta para Angola em busca de melhor vida. Os nomes tinham-nos adquirido na colónia portuguesa da Guiné e tanto marido e mulher tinham sido empregados de Floriano Fragoso e de sua esposa Gisela Rebelo Fragoso roceiros endinheirados que os recolheram ainda jovens.
Norberto tornara-se um excelente cozinheiro e um artista na arte de bem servir e Cacilda transformou-se na ama dos filhos do casal. Tudo ia bem até ao dia em que o fazendeiro se perdeu de amores pela bela Cacilda e foi apanhado em flagrante assédio à rapariga por Dona Gisela. O casal acabou por fugir pois a corda parte sempre por elo mais fraco e acabariam por chegar a Angola num barco de cabotagem que os largara em Moçamedes. Januária pensou que num dia destes tinha de limpar e alindar as campas dos seus progenitores. Em breve faria um ano que os pais haviam falecido e durante esse espaço de tempo sobrevivera sozinha cuidando do arimbo e de quatro cabeças de gado que herdara. Com doze anos de idade, apenas sabia que Deus existia pois a mãe assim a ensinara. Nas sanzalas limítrofes já restava pouca gente. As populações tinham partido com o advento da entrega de Angola aos negros e o fecho das poucas lojas de comerciantes brancos que residiam naquela região. Quando chegou à loja do senhor Aparício para trocar uns franganitos por uns quilos de fuba, este estava a carregar a velha Chevrolet com toda a sorte de bagagem preparando-se para partir também. – Então Januária ainda por aqui andas rapariga? – Não tenho para onde ir senhor Aparício. – Respondeu com humildade. Aparício Cardoso e a sua mulher não tinham filhos e Dona Maria do Céu Cardoso gostava daquela rapariguita airosa e de rosto bonito. – Queres vir connosco Januária? Não vais ficar aqui sozinha. Partiu com eles em direcção à fronteira de Santa Clara mais uma pequena trouxa com os seus pertences e atravessou-a como filha adoptiva do casal com documentos perdidos.
Quando deu por ela estava na barriga de Deus que roncava baixinho no céu azul. Perto do Senegal Dona Maria do Céu apontou para baixo e fê-la ver um conjunto de ilhotas do arquipélago dos Bijagós e sussurrou-lhe ao ouvido. – Foi daquele lugar que os teus pais vieram. A menina estremeceu e agradeceu ao Deus gigante tê-la levado a ver a sua terra ancestral. Quando aeronave aterrou em Lisboa verificou que havia mais deuses espalhados por o lugar e uma multidão a sair de dentro deles. O senhor Aparício com os parcos tostões que conseguira trazer na fuga, abriu uma tasca na Reboleira e Januária passou a ser cozinheira, a servir à mesa e a tratar de todos os afazeres da casa. À noite deitava-se extenuada pois as refeições baratas para os trabalhadores iam tocando o negócio para frente lentamente. Um dia o senhor Aparício trouxe uns papéis e foram a uma repartição onde ela teve de besuntar os dedos e segundo ele era agora cidadã portuguesa.
Com dezoito anos de idade tornara-se uma linda mulher e os olhares dos trabalhadores cabo-verdianos e guineenses devoravam-lhe o corpo com o olhar. Um dia um deles mais atrevido apalpou-lhe os seios e Nicolau Manduco que secretamente a adorava aplicou-lhe dois murros nas ventas e de rastos atirou com ele para o passeio. Quando os ânimos serenaram e ele lhe perguntou se estava tudo bem, ela percebeu que aquele homem robusto e olhar amigável, gostava realmente dela. Pediu ao senhor Aparício se podia frequentar a escola nocturna e ele embora contrariado com medo de perder a extraordinária cozinheira acabou por aceder. Aos vinte e dois anos já sabia ler e escrever e amealhara uns tostões com a espécie de ordenado que o seu protector lhe pagava.
Um dia Nicolau Manduco perguntou-lhe se ela não queria ir viver com ele para a Guiné onde pensava abrir um pequeno restaurante para os turistas que visitavam o território. O senhor Aparício gesticulou e chamou-a de ingrata quando ela lhe comunicou a sua decisão, mas Januária fartara-se de ser cozinheira e criada e partiu para a terra dos seus pais na barriga de Deus. O pequeno estabelecimento foi baptizado de “Viuvinha Negra” o nome com que o seu saudoso pai a alcunhara em pequenina e a comida é de comer e chorar por mais. Volta e meia Deus passa por cima do território e Januária benze-se e agradece-lhe em silêncio o seu destino e pensa nas centenas de pessoas que Deus transportara para longe da sua terra, alterando-lhes o destino.
Ilustrações de Ana Rocheta
Reis Vissapa
As escolhas do soba T´Chingange
RECORDAÇÔES ANGOLA
fogareiro da catumbela
aerograma
NAÇÃO OVIBUNDU
ANGOLA - OS MEUS PONTOS DE VISTA
NGOLA KIMBO
KIMANGOLA
ANGOLA - BRASIL
KITANDA
ANGOLA MEDUSAS
morrodamaianga
NOTICIAS ANGOLA (Tempo Real)
PÁGINA UM
PULULU
BIMBE
COMPILAÇÃO DE FOTOS
MOÇAMBIQUE
MUKANDAS DO MONTE ESTORIL
À MARGEM
PENSAR E FALAR ANGOLA