T’XIPALA DO M´PUTO - FÁBRICA DE LETRAS DA KIZOMBA
Candengue da Maianga - Mau-olhado – Xicululu – Crónica 3342 – 09.01.2023
PorT´Chingange (Otchingandji) no AlGharb do M´Puto
Desengrenando o meu disco a fim de dar arrumo a todas as mokandas, na rapidez, desconsegui acompanhar a velocidade do pensamento. No espaço de lembranças com odor de tamarindo e gajaja, o branco kandengue que era eu, teria os meus seis anos quando fui tirar a minha primeira fotografia no largo Serpa Pinto. Minha mãe Arminda da Maianga reparou que tinha um escuro de tição no rosto e, ali, entre as acácias da minha rua da Maianga, tirou um lenço de linho de sua bolsa, molhou na língua para amaciar e esfregou este no meu rosto como se eu fosse um gato
Uma gata a lamber seu filhote que era eu. Lembro-me de ter barafustado com coisa tão díspar e chorei de raiva até chegar ao fotógrafo que se situava no largo de Serpa Pinto. A fotografia tirada naquela máquina caixote, com manga preta de esconder susto, parece agora, ter andado num tornado castanho de fúria amarela, pontilhada a cagadelas de mosca.
O relâmpago daquela coisa susteve-me os últimos soluços. Desconsegui saber que já era hiena antes de saber que bicho era esse – um puto reguila da mulola do Rio Seco. Depois foram os apitos roucos dum barco que chegava a um cais, muitas casas compridas e homens em tronco nu segurando um saco com malas de chapa pintadas, bikwatas e cacarecos vários. Gritando ordens e, entre eles dizendo palavrões mais um mwadié branco como eu gesticulando ao homem aranha pendurado numa coisa chamada de guindaste; deveria ser o capataz.
Era um tio que estava chegando do M´Puto. Grandes máquinas circulando com luzes a piscar na água; muita água balouçando o azul na linha de horizonte mostrando uma ilha que mais tarde vim a saber ser a ilha da Mazenga; uns peixes brincavam voando ao redor duma cabeça e tripas, talvez dum roncador ou mariquita. Por força das circunstâncias, coisa que me transcendia, meu tio Zé, o Nosso Senhor topeto teve de atravessar o atlântico num vapor de nome Uíge.
Meu tio chegou assim calças largachonas, um chapéu palhinhas muito usado na época, de um branco besugo avermelhado pelo sol do equador. Recordo agora as fotos com ele sentado junto à mandioqueira que dava sombra ao tanque de lavar, uma selha feita de uma metade de pipo de vinho, aduelas do tintol do M´Puto baptizado com água do Beno na loja do Senhor Rente Cruz, o tio do Tony Melo, mais uma tábua ondulada aonde a Dona Arminda esfregava as flanelas da família.
Aquela foto era para entregar no Colégio João das Regras junto ao Martal – Martins e Almeida para compor meu livro de aluno. Até sobraram para mais tarde, um outro colégio chamado de Moderno que ficava bem junto da estação de Caminho de Ferro da Cidade Alta. Lembro-me de ter lido algures que o vapor transatlântico Uíge, tinha escrito numa bandeira, Companhia Colonial de Navegação.
Naquele tempo que pensava ser um kamundongo, percorria os bairros desde a Maianga até o Bairro do Café, com os pés entrançados na grande bicicleta do meu tio Zé Nosso Senhor; assim mesmo feito chambeta, calcorreava a Luua, as encostas dos musseques com o Pica mulato que mais tarde virou oficial superior do glorioso MPLA. Isto de glorioso era ele que dizia, mas o tempo escondeu-nos do convívio, tal como o Aninhas das motas, seu irmão, mais o preto Batalha do Catambor.
Sem sabermos, construíamos todos os dias uma descolorida amizade, impregnada duma vivência que o tempo dissolveu por ideias ou ideais mas Luanda estava ali mesmo, ai-iu-é! Naquela foto de menino, eu não tinha verdadeiramente uma cor de gente; era assim como um boneco com umas calças de ganga grosseiras, sarapintado de manchas a descair sobre uns sapatos quedes da macambira.
Vendo-a, a foto amarelecida, podia passar por uma cor de pele das que os meus amigos tinham. Podia muito bem ser cafuzo, matuto ou mameluco mas, só era mesmo um mazombo, filho de colonos saídos do M´Puto com uma carta de chamada. Até Pica e Batalha, duvidavam que eu fosse mesmo branco! Subia ao coqueiro com a mesma agilidade deles, matava sardões com a mesma pontaria de fisga tiradeira e tinha o mesmo jeito para apanhar rabos-de-junco, plim-plau, xiricuatas, celestes e januários nas lagoas do Futungo ou um qualquer charco de Belas.
Íamos lá longe por detrás do aeroporto de Belas, Craveiro Lopes apanhar pássaros na rede. Mais tarde num dia de inspirada arte, com muito jeito, pintei de branco a minha t’xipala mas, não se parecia. Só Necas me levava a sério chamando-me de Mandrak. Um dia após uma investida de valentia no quintal do Malhoas às maças da índia, gajajas e goiabas, mostrei a dita foto à turma dos “salta muros”; a minha turma! Ué… Seguiram-se risadas desconformadas - Foi um chinfrim que trespassou o silêncio muito para além do Almeida das Vacas, o rio seco, as bananeiras.
Aquele riso não era verdadeiramente de alegria; era, isso sim, um misto de valentia lambuzada na gozação pois que parecia ser mesmo um besugo. Pica, pulou de macaquice, chamando-me de T’Chingange da Manhanga. T’chingange?! Naquele tempo perfumávamo-nos de ignorância atrás do carro da tifa chamando de monangamba aos trabalhadores da recolha do lixo. Mais tarde, fiquei a saber que aquela figura, T’Chingange, era gente de verdade; pintados com argila branca ou cal, no terreiro do kimbo, pulavam como que possuídos de katolotolo…
Glossário:
T’Chingange - um misto de feiticeiro, justiceiro, advogado do diabo (de quem se tem medo); mokanda - carta; M´Puto - Portugal; kandengue - moço, rapaz; kamundongo: Kaluanda - natural de Luanda, rato; rabo-de-junco - pássaro; t’xipala - fotografia (de rosto); besugo - labrego ou simplório, chegado do M´Puto - (gíria de Angola); monangamba - trabalhadores sem classificação especial (pejorativo); kimbo – sanzala (planalto central de Angola), povoado; Carro da tifa - desinfestação de ruas ou quintais para matar o mosquito e outras pragas; selha: Meio barril feito de aduelas; quedes: sapato simples de ténis, em pano; Manhanga: o mesmo que maianga, charco ou poço de água; catolotolo: Zuca, mal da cabeça, maluca, passado dos carretos, com feitiço…
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