T’XIPALA DO M´PUTO - UM JACARÉ NO CAMINHO
FALAS, SÓ ÁTOA
Mau-olhado - Crónica 3417 – 08.06.2023
Por T´Chingange (Otchingandji) no mukifo do Conde do Grafanil
Desfragmentando o meu disco a fim de dar arrumo a todas as mokandas, cheguei a uma amalgama de inventações que o passado escorregou no fermento duma história de diáspora, que não quer ficar esquecida. Meus pais iam ver seu amigo Boni Boni; amigo, era assim mesmo que também me tratava! Ele, o branco mais preto da Catumbela, falando, em prosa, em gíria e na contraluz do discurso directo, arrevesava os verbos do seu jeito jeitoso. Foi quando, numa altura que só chovia, chegamos ao rio Catumbela que tinha jacarés pra caramba, parecendo pedras com olhos reluzentes.
Eram tantos que por volta de 1949, eu ainda era um pivete candengue, após chegar vivendo uma enchente; vou contar mais ou menos do jeito que eles lembram: “Os Bonis”, conhecidos de meus pais e, que no tempo foram ficando amigos, até que tiveram de fugir em um dia, às águas barrentas com jacarés boiando só átoa. A casa com o nome de “SANTI” feita de adobe ao jeito de taipa com ripas cuzadas e barro chapado com mão; vi que por isso mesmo, não resistiu à enxurrada naquela que era a “travessa da verdade”, que logologo ali, chamei de jacarelândia do Boni…
Foi ali mesmo, na Catumbela, no húmido bafo de crocodilos, casa de taipa esfolada, que lhe nasceu o filho mais velho, filho do velho Bonifácio, Boni Boni Torrado, trespassando de três gerações. “M´bika a mundele, mundele ué” (Filho de escravo, escravo é). Bem-disposto, Boni candengue, filho do pai dele, agita no tempo e conta do mais velho pai, bem na forma de como o quer lembrar... Seu herói, usava a filosofia pulverizada, chispando fora o supérfluo – é este filho pivete que já homem diz para mim, sacudindo a chave de grifes de apertar tubos e porcas do seu bedford…
Ele seu pai herói, vou-te-falar, tinha uma bomba tipo FLIT que lhe fabricava ideias – que até fazia arco-íris mesmo por cima das carcaças de geleiras e cambotas na mistura com pistões pintadas de cagadelas brancas marca gaivotas; isso mesmo, um arco-íris como aquele negócio que aparece no céu na chuva cacimbada! Juro (eu próprio) que nem acreditei mas, só fingi, que sim senhor, credito mesmo! - A vida tem os seus segredos, diz ele, Boni filho, no café boteco junto do largo Maria Neno Ovava, enquanto sorve um copito de s’bell, do verdadeiro Whisky da Catumbela.
Os dias passaram na maré de guerras crispadas de recentemente, até que, a independência chegou num repentinamente, os amigos foram bazando de forma dramática; a confusão chegava do sul, do norte e, muitos outros lados; viu-se e desejou-se fazendo das tripas coração para fugir de tudo, mano. É o Boni filho contando!
Nem tudo pode ser mau todo o tempo, concluiu antes mesmo de contar nem sei o quê de seu fim. O que vai acontecer de ruim na vida da gente só pode mesmo ser para melhorar! Que é isso; falas de quê? Ele, melhor, o pai dele só falou no sobreviver, que ia misturando umas quitetas, arroz e folha de mandioca, que o Kamba fintador Cadimbinha trazia do Alto Liro nas horas menos dramáticas entre os intervalos de fogo cruzado; Xis versus Ypson e, desentendia tudo na vice da versa.
Há pois, os búfalos do Sul passaram por ali com tudo, mais bazucas, sabes? Estava mesmo confuso mas entendi, coisas de guerra que também vivi, sim senhor… Foi quando das falas já nem entendi se era o Boni Pai se o Boni Filho. Mas, nem interrompi, deixei só. Teve de usar uma pópia musculada pois, nos contratempos de muito para além dum problema que, surgiam noutro e, na confusão então não tinha sentido. Tudo se tornou maka, mas diferentementemente. Tudo ficou por demasiado na confusão de maka e, no café aonde vendia s´bell whisky da Catumbela, num havia mais. Surgiram t´xipalas novas de muitos lados; o controlo de tudo foi ficando cheio de pequenos ferimentos, adoecendo mesmo. Num dia teve mesmo de fugir à frente dum barulho de tanques de guerra, saiu derramando seu código genético na areia.
Já no fim da restinga do Lobito, carregado de medo, a brancura da pele tornou-o reaccionário – e, ele nem sabia o que era isso! Bom! Passados uns anos ouvia na rádio - “morena de Angola que leva o chocalho amarrado na canela, será que ela mexe o chocalho ou o chocalho mexe com ela”. Assim lembrando o onze de Novembro de 2005, já no M´Puto, 30 anos após o dia da independência, diz ele: “ a bela mulata remexendo… Deixando requentar o feijão no tacho... Na Catumbela”… Na Catumbela?! Nessas cantigas da mututa da libertadura, basou, apanhou o barco e foi para Elvis Bay – só ele mesmo…
Haka! Já era ele mesmo meu amigo Boni Filho, falando: Agora não tem mais cana-de-açúcar, nem s´bell; a própria fábrica do açúcar da Cassequel é um montão de ferro velho e a praça do Império do Lobito, tem uma traineira encalhada no meio; A restinga é só mesmo aquele barco empoleirado, fim dos Tugas. Bonifácio Filho, caçador de catuitas, recorda versando e prosando aqueles tempos de fisga, do antigamente. Como meu pai falava: Se o Xicaça me topava, gritava para o ouvir... Ah! Seu Chiquinho Catava, desta vez, não se vai rir!... É o Boni filho a recordar – o kota Boni, meu pai morreu, faz tempo. E, afinal no Catumbela rio continua correndo chuva, molhada, “Nas claras águas de cacimbo, o rio dilata-se na paisagem de cana sacarina, palmeiras de dendên, e bimbas de copas nas águas. Ficou só um “havemos de voltar” -“bichinha danada, minha camarada do emepelá”
O fim acabou assim mesmo, só átoa – Háka…
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Bibliografia – Catumbela, terra de jacarés de António Gonçalves Rodrigues (o Bonifácio Boni, pai)
Glossário
M´bika a mundele, mundele ué - o escravo de branco também é branco; jacarelândia – abundância de jacarés no rio Catumbela e vila do mesmo nome, na travessa da verdade; Maria Neno Ovava – praça pública com obra escultórica alusiva à musa e água situada em frente aos Correios da Catumbela; S´bell – marca de Whisky muito apreciada pelos Sul-africanos; bimba – árvore de beira-rio de 3 ou 4 metros de altura, tronco mole de extrema leveza, usada para construir jangadas; quitetas – amêijoas, berbigão; Kamba – amigo como irmão (Kimbundu); fintador – dado a truques; búfalos – referente ao batalhão invasor da A. do Sul; catuitas – pássaro bico de lacre (bico vermelho); Tuga – Português; Haka! – Exclamação (Umbundo); emepelá – MPLA, movimenta emancipalista e implicacionista…
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