FÁBRICA DE LETRAS DA KIZOMBA - Crónica 3321 - 24.06.2022 –Republicação a 11.12.2022.
Do Pantanal à Amazónia - 2ª parte
Por T´Chingange (Otchingandji) – No AlGharb do M´Puto
Ainda na Fazenda do Pantanal pude recordar com Peixinho, nosso guia, o neto do rei do Império de Oyó com o título de “Dom Obá II” (Dom Obá, na língua do seu povo ioruba, significa “rei”). Então imaginei-o com fraque e cartola, a desfilar sua banga ninita, suas medalhas penduricalhos de mérito pelas ruas do Rio de Janeiro. Pois assim foi: Um príncipe africano, negro, que viveu no Brasil durante o período em que ainda havia escravidão e o país era governado por um imperador, Dom Pedro II.
Seu nome era Cândido da Fonseca Galvão, mas gostava mesmo era de ser chamado de Dom Obá II d’África. Nasceu no sertão da Bahia, na Vila dos Lençóis, por volta de 1845, filho de africanos forros, ou seja, ex-escravos que haviam conquistado a sua liberdade por meio da carta de alforria. Dizia-se descendente directo, neto legítimo, de um poderoso rei africano – Aláafin Abiodun, rei do Império de Oyó – daí o gostar de ser reconhecido como príncipe.
É interessante conviver de perto com estas alvissaras mistificadas de fantasia na vida real, como sempre vivessem um perene carnaval, resquícios de memória das terras de África. Alistou-se voluntariamente para lutar na Guerra do Paraguai e, devido à sua bravura, foi condecorado como oficial honorário do Exército Brasileiro. Depois da Guerra, fixou-se no Rio de Janeiro, tornando-se numa figura conhecida da sociedade carioca.
Ficando amigo pessoal do Imperador D. Pedro II era entre os negros e mestiçagem do Rio de Janeiro, reverenciado por sua representatividade, como neto do Obá Abiodum. De notar aqui a necessidade das pessoas alimentarem sonhos alheios e de tempos passados que nunca viveram.
Aquela guerra do Paraguai foi a mais sangrenta ocorrida na América Latina no século XIX, envolvendo uma aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai, que terminou com a derrota dos paraguaios. Dom Obá II d´África foi promovido a alferes tendo sido desmobilizado por ter sido ferido na mão durante o conflito. Viveu no Rio de Janeiro, no Centro da cidade, região conhecida como Pequena África, um local historicamente habitado por africanos e seus descendentes.
Vindos de várias partes do país, a gente forra, iam ali como se assim o fosse uma peregrinação de romagem reafirmando-se em sua identidade. Uma Muxima na forma de Ongweva a alimentar uma fé inexplicável… Dom Obá tinha o hábito anualmente realizar uma visita oficial ao Paço, onde era recebido como herdeiro de seu avô. Foi defensor da monarquia brasileira, actuando na campanha abolicionista no combate ao racismo.
Já em Manaus de uma tremenda humidade, amanheci empoleirado em paus espetados no rio Negro. Aqui, quando chove de verdade o céu desaba. O Solimões, que é um rio, surge barrento mais abaixo. Em Alter do Chão o galo cantou despertando a neblina e, no balanço da palmeira entre fumo de fogueira, um novo dia chegou com paz saboreada a café, tapioca e maniçoba. Entretanto nós comprávamos bugigangas, cestos, catatuas de madeira e colares. E, o jabirú lá estava no meio da ilha alagada, dando soberania ao sítio do Alter, a terra do boto e da festa do “çairé”.
Sem saber que era um sonho à beira rio, cercado de Marabás, Caráraris, Ipixumas, Xaporis, Cajarás e Maués, dei comigo na festa do Carimbó comemorando vidas interrompidas num mundo de natureza hostil de onças pretas e pintadas. Estava tomando guarané Maué.: Como um caramuru de pele branca, transpirando forró, falando um português fluido entre garimpeiros, seringueiros e quebradeiras de coco, dei comigo a cantar:- Oi tira coco, solta coco - Vai descendo sem cessar – Bate-bate, racha coco - Quebra a palha devagar. Faz a roda, fecha a roda - Já é hora de cantar - Rapa coco, dança corpo - Na magia do lugar.
Em visita à floresta e no quartel base do Batalhão Militar de Guardas da Amazónia, fiquei impressionado com a pantera negra que por ali estava presa; sua pele brilhante e seus olhos de um amarelo intenso, provocaram-me arrepios reluzindo medo. Já vi muito felino, mas este olhar do bicho andando de um para outro lado, marcou definitivamente este momento; era bicho com que não me queria cruzar no meio dessa densa mata. Por ali fiquei beira pântano, beira rio,... Descendo por cinco dias o rio grande, de Manaus até Belém com Nossa Senhora da Aparecida sofri a soltura prolongada feita disenteria. Aiué, nem vos falo (por agora…)…
Glossário: Tuiuiú - pássaro pernalta símbolo do Pantanal; sucuri - cobra, jiboia; Jiboiei: - descansei em rede; Caimão - pequeno jacaré das Américas; Capivara - animal que parece um rato e é do tamanho de um porco, herbívoro; Kilombo (quilombo): o mesmo que quimbo, sanzala rural; Fujões - escravos fugidos das fazendas; Capitão-de-mato - cipaios ou guardas dos fazendeiros com alvará de busca ao infractor escravo; Obá II - escravo de linhagem que se tornou famoso entre outros; Caboclo - homem rude tarefeiro; Matuto - cruzamento entre índio e mulato (ou branco); Ipê-roxo: - árvore de grande porte, pau d´arco; Sukucaia - fruto do castanheiro do Pará; Manissoba - saca-saca, folha de mandioca fervida durante sete dias (para retirar a seiva venenosa); Jabirú - o mesmo que tuiuiú, pássaro do pantanal (nome popular usado em forma pejorativa); Boto: – golfinho do rio (toninha); “çairé” - festa anual em Alter do Chão, homenagem ao golfinho; Marabás, Xaporis:- tribos de índios; Carimbó - festa dos recolectores da floresta amazónica, seringueiros e agricultores de enxada e catana, pisteiro de onça; Guarané - o mesmo que guaraná em dialecto Maué; Caramuru - homem branco do sul, normalmente de Porto Seguro ou Santa Catarina; Forró – Farra batucada, excitação suada por ambiente festivo, que se traduz em alegria; Seringueiro – homem que extrai a borracha da árvore; Coxias: - herbívoros de pequeno porte; Cajá – taparabé, fruto tropical parecido com a nêspera, gajaja.
(Continua…)
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